Amor

Em verdade te digo que não foi naquela hora
que te pertenci:
quando me tomaste nos teus braços poderosos
e me tiveste sob teus beijos e tua respiração.
Em verdade te digo que não foi naquela hora
mas quando, diante do teu, surgiu meu espírito livre e novo

de rebento inquieto deste século
e descobrimos todas as comunhões das nossas almas.
Quando conheceste as minhas derrotas
e disseste que eram triunfos.
Quando viste pulsar meu coração nu
e o festejaste.
Quando soubeste que nem sempre
os teus pensamentos são os meus pensamentos
nem os teus caminhos são os meus caminhos.

Mas o amor brilhou como nunca em tua face
e me surpreendeste coma torrente de palavras
de que eu tinha sede
desde a minha primeira hora consciente.
Foi quando te pertenci.

in "A dríade e os dardos"

Libertação


Que eu saia de mim
e corte com ânsia todos os mares
e chegue a todas as praias sem fadiga.
Que eu esteja nas grandes planícies, nas montanhas, no lodo
e no tumulto, na orla dos lagos e dos abismos.
Que eu saia de mim
e fique nos caminhos o meu hálito.
Que todos os clamores e todos os risos
e também todos os silêncios repercutam em minha orelha
e a minha língua se torne clara e ardente como o sol
e todos me entendam, os meninos, os pobres.
Que eu saia de mim
e com a soma de minhas libertações
e a massa de minhas vitórias sobre mim
me volte leve e humana
para as angústias e os problemas dos homens.
Que eu saia de mim
e jamais interrogue sobre o princípio, sobre o fim,
mas sempre diante do universo
meu espírito agnóstico seja um olho comovido.
Que eu saia para sempre de mim
e seja uma nova criatura
em que as coisas e os seres fiquem grudados.
Que eu não volte para mim
que para sempre me perca
e da criatura salva
todos sejam impregnados.


Maura de Senna Pereira - Busco a palavra

Poemaura *

Pedro Bertolino **


A Ilha não compartilha:
somente tolera
na sua cartilha,
comensais
serviçais
coniventes sociais.

Há raízes renitentes:
dissimulados censores
de bastidores
impondo “imprimatur”
a novos autores
pela cartilha
e a trilha
dos velhos senhores.

O caminho novo,
aos olhos do corvo,
é sempre de novo
um simples estorvo:
pinto no ovo,
o grito do povo.

Mas, “Busco a Palavra”
soberana
no “País de Rosamor”
serena
em minha lavra
com o gesto, o pão e a flor.


* Em memória de Maura de Senna Pereira, nossa poetisa maior: com Luiz Delfino ou Cruz e Souza, na tríade de condores da poesia catarinense de todos os tempos. Maura foi vítima das críticas de bastidores palacianos dos anos vinte do século passado e continua vitimada, hoje por declarados doutores, ainda serviçais da “eterna vigilância” de interesse dos velhos senhores.

O autor: em 15-10-2008: dia dos professores e, portanto, de Maura.

** Autor de “Viagens com Maura” – esboço biográfico em Maura de Senna Pereira – Edição da ACL, 1993, 253p.

Dia primeiro


No momento em que cheguei
era aurora em Rosamor.

Primeiro passo que dei:
ir ao rio me lavar
das nódoas vis das moedas.
Rio encarnado da aurora
logo tão negro ficou.
(Rio, carrega essas manchas
bem para o fundo do mar.)

Depois de purificada
vieram todas as gentes
veio pastor veio rei
vieram mães e meninos
os mineiros os astrônomos
saudar a recém-chegada.

Em honra da nova irmã
beberam rubra groselha
e dançaram na manhã.

Deram-me casa com flores
trepadeiras de jasmim
vestidos claros de linho
leves túnicas de tule
alpercatas de cetim.
Também esmeralda e pérola
também pães asmos e vinho
as frutas da primavera
e favos sabendo a rosas
e vozes sabendo a mel.

Mostraram os cem meninos
que amanhã vou ensinar.
Mostraram ruas e rosas
que só em sonhos eu vi.
E à noite vi a lua
- grande e perto como o mar.



Maura de Senna Pereira - País de Rosamor

Busco a palavra

A Ascendino Leite


Não a que vem de mitos nem de lendas
a que traz resquícios do passado
nem mesmo nos bosques frescos do porvir
em que por vezes me hei refugiado
A palavra que decreto jamais escreverei
pois a que tenho escrito — tenho rasgado
por imprecisa, inócua, ataviada
Breve ou não, quero-a brava e exata
espelhando o homem do meu tempo
Busco a palavra em que lateje o presente
a hora que o relógio marca
fim de centúria e de milênio
era superapocalíptica
Nem o transato nem o amanhã
só esta hora mesma e conflagrada
de agora
na palavra em que meu semelhante veja
a sua face
e nosso tempo em meu texto
e diga: está certo, irmã

Maura de Senna Pereira - Busco a palavra

Influência simbolista

Maura de Senna Pereira buscou inspiração de sua poesia no também catarinense Cruz e Sousa

Rodrigo Brasil - Especial para o Anexo


Quando lançou "Cântaro de Ternura", Maura de Senna Pereira já tinha travado conhecimento com as transformações em curso na poesia nacional. Como jornalista, divulgava os rebentos da Semana de 22 no suplemento "Domingo Literário", encartado semanalmente no jornal "República", de Florianópolis. Ali publicou por mais de dois anos poesias de autores como Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, e muitos outros. O livro traz influência do simbolismo de Cruz e Souza - uma das maiores referências da poeta -, do modernismo, e mesmo da Bíblia, especialmente do "Cântico dos Cânticos".

Entre suas influências, costumava citar Jorge de Lima, Frederico Garcia Lorca, Ezra Pound. Para Lauro Junkes, "o livro se alinha mais com o simbolismo do que com qualquer outra escola. Cruz e Sousa também tinha prosa poética naquela linha". No entanto, embora possa ser vista como precursora do modernismo em Santa Catarina, não criou escola aqui. "O movimento só foi plenamente implantado em Santa Catarina com o Grupo Sul, no final dos anos 40, após duras lutas", diz Junkes.

A poesia de Maura, entretanto, passou ao largo dos "desequilíbrios, estardalhaços e abusos" modernistas, e como definiam seus pares, e embora se mostre competente e bem cuidada, especialmente por seu virtuosismo rítmico, carece de ousadia para explorar novas possibilidades formais. "De fato, ela era subversiva nas idéias, mas esta postura não transparece em seus textos", diz Junkes. A recepção que o livro recebeu à época mostra como seus contemporâneos não estavam preparados para a renovação trazida por seus versos. Em geral, os jornais falam sobre 'tocar a sensibilidade', 'gotas de ternura', termos mais adequados ao parnasianismo reinante.

A exceção fica para a crítica do "Correio da Manhã", que classificou seus poemas como sendo de um intenso sabor moderno, e de Dante de Laytano, da Academia da Academia de Letras (ACL) do Rio Grande do Sul: "Encarnando o sentido moderno da arte, libertando-se os preciosismos enfadonhos da métrica, criando o ritmo independente e arrojado dos novos, ela se coloca na vanguarda, traduzindo toda a expressão dum instante literário".

Maura foi uma revolucionária também por suas idéias político-sociais avançadas e seu feminismo arrojado em plena década de 20, quando o sexo feminino ainda tinha um papel subalterno na sociedade. Na época que começou a lecionar, ainda na adolescência, havia uma restrição legal às mulheres professoras de se casarem. Logo a escritora colocou-se à frente de movimento para pôr fim à lei que "negava o amor e a maternidade às professoras".Foi o começo de uma luta pelos direitos da mulher, pela democracia, pelas minorias, pelos oprimidos, em favor do divórcio, da liberdade de imprensa, de uma nova moral. Anos antes, em 1925, aos 21 anos, já havia publicado o primeiro artigo feminista da história de Florianópolis. Nele, pedia que as mulheres burguesas, muito confinadas em casa, se eduquem e ocupem novos espaços na sociedade. Em outra ocasião, saiu em defesa de uma mulher presa por roubo, escrevendo uma carta aberta ao interventor local, pedindo sua libertação.

Segundo Junkes, que a conheceu pessoalmente, a poeta foi muito badalada na sociedade. "Sua família era simples, mas seu prestígio social era grande." Em 1933, mudou-se para Porto Alegre, a fim de viver com o marido, mas separou-se oito anos depois, o que causou muita indignação entre a população de Florianópolis. "A sociedade não permitiu que ela continuasse a viver por aqui. Foi-lhe negado o magistério, e também no jornalismo o campo se fechou", diz Junkes. Maura decidiu então mudar-se para o Rio de Janeiro, onde se viria a se unir ao poeta e humanista Almeida Cousin, seu companheiro pelo resto da vida. Com ele conheceu o amor e encontrou um pouco de paz, após ter sido "uma moça rebelde e uma menina sofredora", como se definiu.

Referia-se ao histórico de perdas familiares sucessivas que marcaram sua infância e adolescência, bem como toda sua obra. Seu irmão Carlos, "um rapaz belíssimo, másculo", morreu no mar. E a mãe morreu de pneumonia, assim como o irmão Roberto, e um tio. De família protestante, Maura lia a Bíblia diariamente quando criança, e chegou a tirar o primeiro lugar num concurso infantil de versículos de cor. Porém depois tornou-se agnóstica, e passou a defender idéias telúricas e panteístas. "Somente na ciência eu creio, sim,/ porém jamais esquecerei, ó Cristo,/ que teus luminosos braços abertos/ estiveram sempre abertos para mim", diz no poema "Do Amor".


Fonte: Jornal A Notícia - Anexo - http://www1.an.com.br/2003/jul/20/0ane.htm

Produção com enfoque social

Rodrigo Brasil - Especial para o Anexo

Apenas em 1949, 18 anos depois de "Cântaro de Ternura", Maura publicou seu segundo livro de poesia, "Poemas do Meio Dia". A partir de "Círculo Sexto", de 1959, sua poesia gradativamente volta-se para temas sociais, em consonância com sua fase comunista, que abandonou depois. "País de Rosamor", de 1962, embora bastante politizado, foi muito bem recebido pela crítica, merecendo elogios inclusive de Carlos Drummond de Andrade. "País de Rosamor: que nome mais belo para um país, e que país mais belo do que esse? Por sua poesia, fui transportado até ele, e nele encontrei sua presença amiga, (...) capaz de criar um mundo mais delicado no mundo em que vivemos", diz o poeta.

"No momento atual, em que se apregoa tanto uma poesia socialista, Maura consegue o máximo neste sentido, cantando o amor e o entendimento dos reinos entre si, pregando uma integração com a natureza, um regresso do homem ao chão, ao que lhe é dado abranger e desfrutar", diz Walmir Ayala, em 31/07/62, para o Folhetim do "Jornal do Comércio".

Em 1978, lança "A Dríade e os Dardos", uma coletânea de seus poemas. "Poemas-Estórias", de 1984, seu último livro inédito de poesia, traz 11 poemas de caráter narrativo que mantêm intacta sua força lírica. Lendo seus versos, Drummond disse: "Que gravidade e pureza! Sente-se que eles vieram de raízes profundas, trazendo o sal da terra e da experiência".

Com a morte de seu companheiro Almeida Cousin, em 1991, Maura ficou totalmente desestruturada. Morreu nove meses depois, no dia 21 de janeiro de 1992, aos 88 anos. Na ocasião, a ACL apressou-se em solicitar à irmã Zaura Dupont que remetesse os originais do livro inédito, "Andarilha da Madrugada", para ser editado. Porém a irmã informou que Maura tinha destruído os originais: "Quando eu lhe perguntei por que o fizera, respondeu: Este livro era todo dedicado ao Cousin. Ele não está mais aqui, não quero mais imprimi-lo". (RB)



Fonte: Jornal A Notícia - Anexo - http://www1.an.com.br/2003/jul/20/0ane.htm

Moderna, feminista e revolucionária

Primeira mulher a ser eleita para uma academia de letras no Brasil, catarinense Maura de Senna Pereira teceu trajetória de sólida atividade literária

Rodrigo Brasil - Especial para o Anexo


A poeta Maura de Senna Pereira (1904-1992), considerada a maior expressão feminina da literatura catarinense, permanece desconhecida mesmo em seu Estado natal, a ponto de não ser possível encontrar os livros de sua autoria nas livrarias atualmente. Perto de se comemorar o centenário de seu nascimento, no dia 10 de março de 2004, a Academia Catarinense de Letras (ACL) começa a preparar a edição de sua obra poética completa, e pretende lançá-la no começo do próximo ano. Com isso, as atenções devem se voltar para esta Anita Garibaldi das letras, que soube transgredir bravamente o parnasianismo literário e o conservadorismo social de sua época e impor-se como uma precursora do modernismo e do feminismo.

Embora a admiração por sua postura revolucionária seja quase unânime, não existe um consenso entre os críticos catarinenses sobre a importância de sua poesia. "Em Santa Catarina, é a figura de maior destaque na primeira metade do século 20", diz Lauro Junkes. "Maura foi uma mulher de muita força. Ela circulava no meio cultural com a independência de quem tinha o nariz no lugar e sabia o que estava fazendo. Porém, embora tenha construído uma obra, não fez nenhuma obra-prima", diz Iaponan Soares.

"Considero-a uma escritora de primeiro time, inclusive superior a Cruz e Sousa, simplesmente porque foi adepta do modernismo, um movimento mais significativo que o simbolismo de Cruz e Sousa, um mero imitador de Verlaine", diz Pedro Bertolino, autor do livro "Viagens com Maura", um perfil biográfico baseado na obra da autora. Porém, Maura não alcançou projeção nacional significativa. O crítico Wilson Martins, por exemplo, mesmo morando no Paraná, um estado vizinho, diz não conhecê-la. Além disso, a autora permanece ausente dos livros de referência.

Eleita para a ACL em 1930, aos 26 anos, Maura foi a primeira brasileira a se tornar uma imortal. Ali encontrou um ambiente tardiamente parnasiano, refratário ao modernismo de 1922. Porém, apesar do patrulhamento do acadêmico de Altino Flores e seus pares, a escritora reivindicou mais tarde o mérito de jamais ter aderido ao parnasianismo e ter sido sempre moderna.

"Mesmo no começo Maura não adotou a posição conservadora da Academia. Ela jamais se submeteu a qualquer tradicionalismo, seja literário ou social", diz Junkes. Bertolino concorda: "Cântaro de Ternura" tem versos brancos e livres, sem qualquer relação com o formalismo parnasiano", diz. "Somente em "Poemas do Meio Dia", livro de 1949, quando já morava no Rio de Janeiro há praticamente uma década, é que vamos encontrá-la trabalhando, às vezes, com a métrica tradicional e, ainda assim, sem os ranços parnasianos", completa. Para Iaponan Soares, no entanto, seu primeiro livro, "Cântaro de Ternura", é um tanto parnasiano. "Maura foi se aproximando do modernismo e se renovando em direção à contemporaneidade aos poucos", diz.

Lançado no final de 1931, "Cântaro de Ternura" traz 18 poemas em prosa de grande força telúrica, inspirados na paixão sensual por seu primeiro marido, Dorval Lamote, com quem teria se casado "também levada pelo sexo", como reconheceu depois. "O conservadorismo era total. Eu me sentia muito ligada à terra, parecia assim que era com os elementos da ilha que eu queria navegar. Os humos, o esperma dos bosques, a força do sol, tudo isso", disse a escritora, em entrevista à jornalista Colaca Grangeiro e ao escritor João Paulo Silveira de Souza, em 1990.

Fonte: Jornal A Notícia - Anexo - http://www1.an.com.br/2003/jul/20/0ane.htm

Canto da companheira

Sairei pela manhã clara em busca do pensamento do mundo.

Irei até as searas e às trepidantes fábricas
e verei o operário mover êmbolos
e turbinas, hélices, tratores.
Entrarei nos barcos, descerei às minas,
estarei nas mansões e nos cortiços
nas igrejas e nas tascas
pois nenhum lugar me há de ser vedado.
Escutarei as ânsias do povo, as pedras da rua
e verei as lutas entre o velho e o novo.
Escreverei então
com suor e sangue o húmus da terra
o que houver captado
assim unida, colada ao fundo da vida.

Só voltarei pelo fim da tarde
com ligeiros passos
para pôr, antes da noite,
flores vivas no grande jarro.
Cortarei rosas no jardim em tua honra
rosas e dálias para te saudarem.
Voltarei com ligeiros passos
e quando chegares trazendo teu dia
áspero, participante, igual ao meu
e cachos de begônias rubras pra mim
já estarão soltos meus cabelos
e acesa a lâmpada.

in "A dríade e os dardos"

Buscar-me em flor

Buscar-me solta amanhecendo
dentro da tarde na solidão selvagem.
Solta na mata cortada pelo arroio
edênico e tão próximo
do rio Biguaçu ainda longe do mar.
Em verdes e pardos bosques
embrenhada buscar-me
passando cercas de vinhas e franboesas
galgando árvores com esconderijos maternos
para os ninhos fecundo dormindo.
Lábios vaiando os irisados insetos
- lábios roxos das frutas devoradas -
cintura ornada de boninas
cabelos misturados de aragem.
Buscar-me nos mesmos sítios de
aromas afrodisíacos e águas índias
(restos do Éden, sítios intocados)
e, no entanto, onde
a garganta juvenil? o adolescente cabelo?
o ímpeto dos pés pequenos?
onde a carne amanhecendo?



in "A dríade e os dardos"